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A Covid-19 questiona o sentido da vida

"A intrusão do Covid-19 revelou estas virtudes, presentes nos humanos mas de modo especial nos pobres e nas periferias, porque lá se refugiaram, pois nas cidades impera a cultura do capital, com seu individualismo e falta de sensibilidade face à dor e ao sofrimento das grandes maiorias da população. O que se esconde atrás destes gestos cotidianos de solidariedade? Esconde-se o princípio esperança e a confiança de que, apesar de tudo, vale a pena viver porque a vida, na sua profundidade, é boa e foi feita para ser levada com coragem que produz autoestima e sentido de valor", escreve Leonardo Boff, ecoteólogo, filósofo e escritor brasileiro, e autor de Saudade de Deus (Vozes 2019).

Eis o artigo:

A intrusão do Covid-19 atingindo todo o planeta e dizimando mais de um milhão de vidas sem poderem ser veladas e receberem o último carinho de seus familiares, além de infectar outras milhões de pessoas, suscitou a perturbadora pergunta: qual o sentido da vida? Por que esse sofrimento todo? O que a natureza nos quer dizer com esse vírus invisível que colocou de joelhos todas as potências militaristas tornando ineficazes suas armas de destruição em massa? O Covid-19 caiu como um meteoro rasante sobre o sistema do capital e o neoliberalismo. Seus mantras foram destroçados. Adiantou alguma coisa o lema de Wall Street: “greed is good” = a cobiça é boa? Ninguém come computadores, nem se alimenta dos algoritmos da inteligência artificial.

Qual eram os dogmas da fé capitalista e neoliberal? O essencial é o lucro, no menor tempo possível, a concorrência feroz, a acumulação individual ou corporativa, o saque cruel dos recursos da natureza, deixando as externalidades por conta do estado, a indiferença face à taxa de iniquidade social e ambiental, a postulação de um Estado mínimo para escapar das leis limitantes e poder acumular mais desimpedidamente.

Se tivéssemos seguido estes mantras, o extermínio de vidas humanas seria incalculável. Sem políticas públicas as pessoas seriam tragadas por um destino atroz.

O que nos tem salvado? Aqueles valores e atitudes ausentes no sistema do capital e neoliberal: a percepção de que não somos "deuses" mas totalmente vulneráveis e mortais, expostos à imprevisibilidade. O que conta não é o lucro mas a vida; não é a concorrência mas a solidariedade; não é individualismo mas a cooperação entre todos; não é o assalto aos bens e serviços da natureza mas o seu cuidado e proteção; não é um estado mínimo, mas o estado suficientemente apetrechado para atender as demandas urgentes da população. Dito diretamente: o que vale mais, a vida ou o lucro? A natureza ou a sua expoliação desenfreada?

Responder a estas perguntas impostergáveis é interrogar-se sobre o sentido ou o absurdo de nossa vida, pessoal e coletiva. O isolamento social é uma espécie de retiro existencial que a situação nos impôs. Cria-se a oportunidade de colocar estas questões inadiáveis. Nada é fortuito nesse mundo. Tudo guarda uma lição ou um sentido secreto que cabe desvendar, por mais perplexa que seja a realidade. O que não podemos é permitir que esse sofrimento coletivo seja em vão. Ele funciona como um crisol que purifica o ouro, que acrisola nossa mente, e põe em xeque certos hábitos a serem revistos e novos a serem incorporados especialmente com referência à nossa relação para com a natureza e o tipo de sociedade que queremos, menos perversa e mais solidária.

Todos falam da medicina, da técnica e dos insumos e principalmente da busca ansiosa de uma vacina contra o Covid-19. Poucos são os que falam da natureza. Precisamos considerar o contexto da irrupção do coronavírus. Ele não é isolado. Veio da natureza que por séculos foi saqueada irresponsavelmente pelo processo industrialista do capitalismo e também do socialismo, no falso pressuposto de que a Terra teria recursos infinitos. Desmatamos impiedosamente e assim destruímos os habitats dos milhares de vírus que vivem nos animais e até nas plantas. Perdendo sua “morada natural” buscam em nós um lugar de sobrevivência. Desta forma temos conhecido uma vasta gama de vírus como o zika, o chikungunya, o ebola, a série derivados do SARS como o Covid-19 entre outros.

Temos a ver com um contra-ataque da natureza ou da Mãe Terra contra a humanidade, que querem nos transmitir uma severa admoestação: “parem com a agressão impiedosa, destruindo as bases físico-químicas-ecológicas que sustentam a vossa vida; caso contrário poderemos lhes mandar vírus muito mais letais que poderão dizimar bilhões de vocês, da espécie humana, e afetar gravemente a biosfera, aquela fina capa um pouco maior que um fio da navalha que garante a continuidade da vida”.